Re-Animador (Parte 5)

O Chamado de Haibao

Despachada do Consulado Britânico, a doutora Helen Goodwhite chega ao Hospital Especial de Jiangnan para Diabruras Estrangeiras Inexplicáveis, a fim de entrevistar um interno problemático.

Dra. Goodwhite: Como você está se sentindo hoje Senhor Vaughn? Disseram-me que você está bem mais calmo.

Vaughn: Ok, eu acho. Um pouco desorientado. Há quanto tempo…?

Dra. Goodwhite: Você se lembra por que está aqui?

Vaughn: Não exatamente

Dra. Goodwhite: Essas cicatrizes nos seus braços, alguma ideia?

Vaughn: [Hesitante] Algum tipo de acidente…?

Dra. Goodwhite: Eu tenho alguns relatos de testemunhas aqui, todos muito consistentes, talvez eles estimulem algo. Parece que você estava descendo a Nanjing East Road quando de repente você começou a guinchar “a-ya, a-ya, a-ya” com um sotaque chinês muito pouco convincente antes de mudar para o inglês e gritar “Sair. Sair. Temos que sair da cidade”. Depois disso, quando ninguém tomou nenhum conhecimento, você continuou a ‘berrar agressivamente’… Hmmm, vejamos [folheando suas anotações], ah sim, “Prole de Haibao, você são todos a maldita prole de Haibao, maldita prole zumbi do sangue-praga de Haibao”, e assim por diante, uma quantia considerável de obscenidades aparece e depois… ah, aqui somos “a maldita prole imunda intoxicada de futuro de Haibao, morrer, morrer, vamos todos morrer” et cetera, et cetera, et cetera. Aí você atravessou a rua correndo e arrebentou a janela de vidro laminado de uma loja de presentes da Expo com as mãos. [Olhando para cima] Você lembra de alguma dessas coisas, senhor Vaughn?

Vaughn: Algumas, sim. Agora que você mencionou. Está voltando. Mas não foi realmente assim.

Dra. Goodwhite: Não foi?

Vaughn: Na realidade, não. Pelo menos, essas coisas aconteceram, sim…

Dra. Goodwhite: Aconteceram?

Vaughn: Sim, mas é só, o que significam… [hesitando]

Dra. Goodwhite: Continue.

Vaughn: Bem, elas não significam nada, claro, o que eu quis dizer foi, bem, foi meio que um erro.

Dra. Goodwhite: Um ‘erro’?

Vaughn: Sim, ou, eu acho, mais um mal entendido.

Dra. Goodwhite: Temo que você vá ter que ser bem mais específico se formos fazer qualquer progresso.

Vaughn: É bem complicado.

Dra. Goodwhite: Por favor. Só comece do começo.

Vaughn: Suponho que tenha começado no pavilhão.

Dra. Goodwhite: O pavilhão do Reuno Unido na Expo?

Vaughn: Eu estava trabalhando lá, sabe.

Dra. Goodwhite: Está no arquivo.

Vaughn: Então você sabe qual a aparência dele.

Dra. Goodwhite: Sim, claro.

Vaughn: Os tentáculos, o cintilar, o nome como uma provocação… deles.

Dra. Goodwhite: Chamava-se ‘Seed Cathedral’, de acordo com isto.

Vaughn: Seed Cathedral, Sea Cthudral, que seja, foi mandado de volta, para cima, para nos mostrar sua verdadeira ‘face’.. Pelo menos, foi o que eu pensei na hora, mas isso é bem ridículo, né? Estou percebendo agora.

Dra. Goodwhite: Mas ‘na hora’ você pensou que ‘eles’ tinham ‘mandado ela de volta’?

Vaughn: Eu tinha trabalhado muito duro. Foi bem estressante, sabe. Eu não estava dormindo bem, me preocupando e foi aí que eles começaram a conversar.

Dra. Goodwhite: Quem eram ‘eles’, Senhor Vaughn?

Vaughn: Os Haibao, claro.

Dra. Goodwhite: Ah sim, o mascote da Expo…

Vaughn: Máscara, não mascote.

Dra. Goodwhite: Você sabia que o Pavilhão Corporativo de Shanghai foi desfigurado com uma tinta luminosa azul, na note de nove de setembro? [Ela passa um fotografia.]

Vaughn: [Estremece silenciosamente]

Dra. Goodwhite: A mensagem é um tanto críptica, mas suas palavras me lembraram dela, por alguma razão. É um pouco difícil de ler pela foto, mas eu tenho uma transcrição. “Somos muitos e, no entanto, singulares. Nosso nome é igual a 90, o vácuo fervilhante, que envolve a inteligência artificial e o alfa-ômega terminal. Viemos das profundezas, da tela azul no fim do mundo. Cthublue.”

Vaughn: Eu não sei nada sobre isso.

Dra. Goodwhite: É mesmo?

Vaughn: É cultismo Haibao, dos fortes. Eu nunca tocaria nisso — nunca.

Dra. Goodwhite: E no entanto, você parece reconhecer.

Vaughn: Dos sonhos — sonhos ruins, realmente ruins. Eu lhe disse, eu não estava dormindo bem. Eles não paravam de conversar, de me dizer coisas que eu não queria ouvir, não conseguia pará-los. Eu tentei, mas eles continuaram me chamando.

Dra. Goodwhite: Chamando-lhe para se curvar perante o mais elevado?

Vaughn: [Indignado] Eu nunca disse isso. Eu nunca diria isso. É absurdo, obsceno. Não é nem mesmo um código.

Dra. Goodwhite: [Verificando suas notas]. Então, você entende agora que ‘hairy crab’ não é um anagrama secreto para ‘Haibao’?

Vaughn: Sim, posso ver isso, claro.

Dra. Goodwhite: Não está nem perto, na verdade — letras demais, pra começar.

Vaughn: Bem, seis e nove são gêmeos rotacionais, e ‘o’ é um ‘cry’. [Soluça levemente]… É tudo sem sentido. Eu vejo agora. Eu estava confuso.

Dra. Goodwhite: O problema, Mister Vaughn, é que esse assunto ainda parece lhe excitar de uma maneira um tanto desproporcional. Acho que precisamos conduzir um pequeno teste. Vamos ver o que acontece quando comparamos isso [ela pega sua bolsa e tira dela a estatueta de uma abominação com tentáculos na face, esculpida há muito tempo por alguma tribo de uma ilha no Pacífico, presumida estar extinta] com isto [um boneco azul ameno, cartunesco e vagamente antropomórfico, sugestivo de um anúncio de pasta de dentes para crianças]. A similaridade não é especialmente impressionante, é?

Vaughn: Não, não, não, não, NÃOOOOOOOOOO.

Dra. Goodwhite: Perdão, o quê?

Vaughn: [Em uma voz quase indiscernível] Os profundos.

Dra. Goodwhite: Não captei essa.

Vaughn: Das profundezas, o oceano — os profundos. Eles vêm do mar — ‘tesouro do mar’ [ri morbidamente]. Até você tem que entender essa, doutora. Globalização, tecno-capitalismo, Shanghai, invasão alienígena, a Coisa — dificilmente poderia estar mais claro. Escapou do abismo, e agora está exposta. O tempo chegou. Mudança Marítima, Modernidade, chame do que quiser, não importa. Os Haibao nos contarão como pensar bem em breve, e obedeceremos, porque estão atrás de nós, sob nós, e descascaremos do que eles sempre foram como pele morta de uma cobra. Eles já nos mostraram a derradeira cidade deus, então não demorará. Suas palavras estão chegando, sussurros, murmúrios…

Dra. Goodwhite: [Inquieta] Oabiah nasce zhee ute ewoit.

Vaughn: Perdão?

Dra. Goodwhite: Isso não significa nada para você?

Vaughn: Nada

Dra. Goodwhite: Estranho, então, que esteja tatuado no seu braço.

Vaughn: Não tenho ideia de como chegou aí

Dra. Goodwhite: Certo, vamos seguir em frente, sim?

Vaughn: Seguir para onde, doutora? Já estamos aqui, na cidade no fim do mundo, a coisa que saiu do mar. Não vamos a lugar nenhum. Ela está vindo até nós, agora mesmo, e não pode ser parada. O que você esperava? Uma Nova Jerusalém? [gargalhando desagradavelmente]

Dra. Goodwhite: Certo, Senhor Vaughn, creio que estamos terminados aqui. Precisamos lhe dar uma atenção apropriada e profissional. Aí, depois de algum descanso, de volta à sua família…

Vaughn: [Gargalhada prolongada, ainda mais medonha] Tarde demais, doutora! Muito tarde demais. Os Haibao já a tomaram. Vieram até as crianças primeiro, você não percebe isso? Você sabe quantos bonecos Haibao minhas doces criancinhas acumularam? [Voz falhando] Dezessete! Elas bem podem estar com tentáculos saindo dos olhos — equivaleria à mesma coisa. Os Haibao derreteram suas almas na tela azul meses atrás. Essa geração se foi. Há muito tempo. Tinha acabado mesmo antes dos clones Haibao terem deslizado para fora da televisão.

Dra. Goodwhite: [Recuando nervosamente] Essa foi uma conversa muito interessante, mas eu realmente tenho que ir agora. Eu direi ao consulado que… que…

Vaughn: [Distraído, contemplando o azul] Eles querem nos transmutar — nos substituir — por algo indizível, por uma monstruosidade biônica de além da tela azul. Nossas metrópoles estão se tornando… Na verdade, elas nunca foram nossas. Os profundos, os Haibao, sempre as usaram para nos modificar, nos usando para fazê-las — esse é o circuito: animação alienígena. Era um jogo cósmico, uma aposta, e agora eles a estão recolhendo…

Dra. Goodwhite: [Fica pálida, uma horrível compreensão lhe ocorrendo] Cidade melhor, vida melhor…

Original.

Um Guia de Shanghai para o Viajante no Tempo (Parte 3)

Dieselpunk com características chinesas

A Wikipédia atribuiu o primeiro uso do termo ‘retrofuturismo‘ a Lloyd John Dunn (em 1983). Junto com seus companheiros do ‘Tape-beatles’, John Heck, Ralph Johnson e Paul Neff, Dunn era editor da ‘subrevista’ Retrofuturism, que apareceu ao longo dos rodapés das páginas da revista Photostatic, no período entre 1988 e 1993. A agenda dos Tape-beatles era artística, e o retrofuturismo foi “definido como o ato ou tendência de um artista de se progredir ao se mover para trás”, testando os limites entre cópia e criatividade através de um plagiarismo sistemático e de um engajamento experimental com as tecnologias de reprodução. Quaisquer que sejam as realizações deste movimento retrofuturista ‘original’, elas logo foram superadas pelo próprio termo.

Um entendimento mais recente e comparativamente mainstream de retro-futurismo é representado pelos websites de Matt Novak (de 2007) e Eric Lefcowitz (de 2009), devotados a história cultural do futuro. Especializando-se em uma comédia da desilusão (inteiramente temperada com kitsch nerd), esses sites exploram a incongruência humorística entre o presente como outrora imaginado e sua realização atual. O conteúdo é dominado pelo rico legado de previsões falidas que se acumulou ao longo de um século (ou mais) de ficção científica, futurologia e expectativas populares de progresso, cobrindo tópicos desde colonização especial, cidades sob o mar, projetos urbanos extravagantes, sistemas de transporte avançados, robôs domésticos humanoides e armas de raios-laser até macacões como vestuário e pílulas de carne. Esse gênero de retro-futurismo é epitomado quase perfeitamente pelo livro de 2007 Where’s My Jetpack?: A Guide to the Amazing Science Fiction Future that Never Arrived (“Cadê Meu Jetpack?: Um Guia do Incrível Futuro da Ficção Científica que Nunca Chegou”, sem tradução para o português). O sentimento do gênero é altamente consistente e bem facilmente resumido: o desapontamento com o sub-desempenho do presente é redimido pelo divertimento com a promessa extravagante – até mesmo absurda – do passado.

O retro-futurismo no modo “ausência de jetpack” pode ter horizontes históricos amplos. Ele está limitado apenas pela existência de previsões adequadamente especificadas, idealmente do tipo concreto e tecnologicamente definido, mais bem adaptado à lembrança paródica. O índice de paleo-futuro, ou “visões passadas do futuro”, de Matt Novak cobre 130 anos (dos anos 1870 até a década 1990). Não obstante, as características essenciais do gênero desproporcionalmente o atraem para ‘Era Dourada’ da ficção científica (americana), centrada nos anos 1940 e 50, quando o otimismo tecnológico alcançou seu apogeu.

Datando da edição de julho de 1939 da revista de FC pulp Astounding Science Fiction (editada por John W. Campbell e contendo estórias de Isaac Asimov e A. E. Van Vigt) ou da abertura, em abril de 1939, da vertiginosamente futurista Feira Mundial de Nova York, a Era Dourada podia ter sido pré-programada para a ridicularização retro-futurista. Seu otimismo carecia inteiramente de dúvidas próprias; sua imaginação foi clareada graficamente pelas ferramentas de marcação emergentes da publicidade moderna, das RPs e da política ideológica global; suas engenhocas favoritas eram voluptuosamente visualizadas, de grande escala e antropomorficamente significativas; e uma cultura consumidora emergente, de escala e sofisticação anteriormente inconcebível, serviu tanto para embalar o futuro em uma série de produtos distintos e tangíveis, quanto para promover aspirações de empoderamento individual (ou da família nuclear) através do consumo, que mais tarde seriam alvo de escárnio. Casando, de maneira pouco plausível, o conservadorismo social com o utopismo tecno-consumista, cada família com seu próprio carro voador é uma visão que, desde o princípio, se precipita em direção a uma hilaridade retro-futurista. Na época em que Os Jetsons foi exibido pela primeira vez, a Era Dourada havia acabado, e a gargalhada, começado.

Se The Gernsback Continuum (1981) de William Gibson antecedeu o termo ‘retro-futurismo’, ele sem dúvidas consolidou o conceito, investindo-o com um potencial cultural que de longe excedia qualquer coisa com que os despreocupados gracejos dos 00s conseguissem se equiparar. Em vez de procurar, entre os detritos especulativos da Era Dourada, objetos de condescendência divertida, Gibson traça seus temas até o ‘Raygun Gothic’ (“Gótico Raio-Laser”) ou ‘American Streamlined Modern’ (“Aerodinâmico Americano Moderno”) do período entre-guerras e, em seguida, projeta essa cultura abandonada adiante, como uma história alternativa contínua (dominada pelo utopismo semi-fascista). O Continuum de Gernsback não é uma mera coleção de excentricidades, mas sim um caminho não tomado, que continuou a assombrar a imaginação da ficção científica. O cyberpunk seria seu exorcismo.

Hugo Gernsback (1884-1967), comemorado pelo prêmio ‘Hugo’ de ficção científica, era um entusiasta da ficção futurista e (obscuro) empreendedor editorial que, mais do que qualquer outro indivíduo identificável, catalizou a emergência da ficção científica enquanto gênero auto-consciente, promovido através de revistas ‘pulp‘ de impressão barata e lugubremente populares. Na primeira edução de Amazing Stories, que ele fundou em 1926, Gernsback definiu a ‘scientifiction‘ como um “romance encantador, misturado com fatos científicos e uma visão profética”. Embora normalmente detestado por seus maltratados escritores, devido as suas práticas empresariais mordazes, a política de Gernsback parece ter sido insignificante. A sinistra tecnocracia ariana retratada em The Gernsback Continuum provavelmente se deve mais à reputação de seu sucessor na Amazing Stories, John W. Campbell (1910-1971) e às tendências culturais mais amplas que ele representava.

O re- (ou pré-) direcionamento do retro-futurismo, de sonhos abandonados para histórias alternativas, desencadeou uma cascata de avalanches. Frequentemente, elas foram marcadas pelas peregrinações do sufixo ‘-punk’. Inicialmente indicativo de um impulso anti-utópico (ainda que não necessária e positivamente distópico), cujo futurismo ‘sujo’ abrange desordem social e psicológica, causalidade caótica, desenvolvimento desigual e horizontes colapsados, ele cada vez mais adotou um sentido adicional e anteriormente imprevisível. A história da ficção científica – e talvez a história de maneira mais ampla – foi ‘punkizada’ pela emergência de subgêneros literários e culturais que a carregaram por linhas de potenciais não realizados. O cyberpunk pertencia, de maneira reconhecível, à nossa linha do tempo eletronicamente reprojetada, mas o steampunk, o clockpunk, o dieselpunk (ou ‘decopunk‘) e o atompunk – para listá-los em ordem aproximada de aparição – extrapolavam sistemas tecno-sociais que já haviam sido abandonados. Se esses eram ‘futuros’ de alguma forma, eles não ficavam adiante, mas ao longo de trilhas ramificadas, ao lado.

Esses vários micro-gêneros ‘retro-punk‘ podem ser entendidos de inúmeras maneiras. Quando concebidos primariamente como literatura, eles podem ser vislumbrados como reanimações de características de certos períodos da história da ficção científica ou, de maneira mais incisiva, como futuros datados liberados do domínio do tempo subsequente. Por exemplo, o futuro vitoriano dos steampunks era mais do que um presente eduardiano vagamente antecipado, era algo completamente diferente, impelido em parte pelo potencial real, mas não realizado, da computação mecânica (conforme concretizada nas Máquinas Diferencial e Analítica de Babbage e Lovelace).

Compreendidos de maneira mais teórica, os gêneros retro-punk ecoam debates significativos. Em particular, argumentos axiais, tanto na esquerda quanto na direita, se fundem em discussões sobre história alternativa, especialmente no coração sombrio do dieselpunk, nas décadas de 1920 e 30. Por mais de meio século, o marxismo europeu tem sido inextricável de explorações contra-factuais da experiência soviética, se focando no período de máxima inovação Prolekult entre o fim do pós-guerra civil e a repressão realista social que pressagiou o regime stalinista. A figura de Leon Trotsky enquanto herói socialista da história alternativa (dieselpunk) não faz sentido em nenhum outro contexto. Na direita, o conservadorismo americano se focou cada vez mais na interrogação contra-factual da resposta keynesiana de Hoover/FDR à Quebra de 1929 e na subsequente Grande Depressão, entendido como o momento em que o capitalismo republicano laissez-faire foi suplantado pela social-democracia do New Deal (camisetas de Coolidge/Mellon de 28 ainda podem ser difíceis de encontrar, mas seu dia pode chegar).

Embora Shanghai esteja fazendo seu upload até um amanhã cyberpunk tão rápido quanto qualquer cidade na terra, ela tem poucos portais temporais óbvios que se abram para futuros clockpunk, atompunk ou (mais discutivelmente) steampunk. Com o dieselpunk, contudo, essa série de rejeições é imediatamente interrompida. Se algum semideus dieselpunk louco tivesse alugado o mundo para usar como laboratório, o resultado teria sido – com um grau tolerável de aproximação – indistinguível de Shanghai. Xin haipai é o dieselpunk com características chinesas.

O grande contra-factual dieselpunk de Shanghai é inescapavelmente: e se a invasão japonesa não tivesse interrompido a alta modernidade da cidade em 1937? No que a cidade estava se transformando? Por debaixo dessa pergunta envolvente, contudo, e ainda antes, uma grande quantidade de alternativas clama por atenção. E se o Terror Branco de 1927 não tivesse esmagado o movimento dos trabalhadores urbanos? E se o PCC tivesse sido bem-sucedido, como Song Qingling sonhava, em transformar o governo republicano da China a partir de dentro? E se a política internacional da prata não tivesse se combinado com a cleptocracia de Guomindang para destruir o sistema financeiro independente? E se Du Yuesheng tivesse estendido suas ambições à política nacional? E se a descolonização da cidade tivesse procedido sob condições de tempos de paz? E se a subsequente evolução social e econômica de Hong Kong tivesse podido ocorrer onde foi germinada, em Shanghai?

O 90º aniversário da fundação do Partido Comunista Chinês foi um ocasião para todo o país se perder nos arrebatamentos sombrios do dieselpunk de Shanghai. Era hora de retornar à década de 1920, de revisitar a história como uma aventura em contingência, antes que as realidades há muito estabelecidas tivessem sido peneiradas da intensidade do puro potencial, e de reanimar o indeterminismo implícito na tensão dramática. É improvável que o filme comemorativo devotado à fundação do PCC, Beginning of the Great Revival (“Início do Grande Renascimento”), tenha sido deliberadamente formulado no gênero dieselpunk, mas os microblogueiros da nação o reconheceram pelo que era e pulularam a oportunidade apresentada por esta reabertura do passado.

O espessamento do ciberespaço transforma a história em um playground de potenciais, onde coisas podem ser recarregadas e tentadas de diferentes maneiras. Infraestruturas eletrônicas se espalham e se sofisticam, rodando realidades como cenários múltiplos e variáveis, com uma intolerância cada vez maior para resultados rígidos e legados congelados. Conforme o domínio da atualidade estabelecida é erodido por correntes de experimentação, o passado se reanima. Nada jamais acaba.

O jogo que Shanghai joga, ou a estória que ela conta, é interminavelmente recomeçado na paisagem urbana dieselpunk dos anos 1920 e 30, onde tudo que qualquer um poderia querer existe em uma potencialidade densa e não expressa – fortunas globais, territórios gangsters, insurreições proletárias, descobertas revolucionárias, glória literária, intoxicação sensorial, assim como todas as permutações de prosperidade urbanita modesta. É uma cidade em que qualquer coisa pode acontecer e, em algum lugar, em algum tempo, tudo acontece.

Original.

O Acordo Final

A responsabilidade social aparece em lugares inesperados

Para começar com algo comparativamente familiar, na medida em que jamais poderia ser: o cerne político do histórico romance cyberpunk Neuromancer de William Gibson. No meio do século XXI, os prospecto da Singularidade, ou explosão de inteligência artificial, foi institucionalizado como uma ameaça. Amplificar uma IA, de tal maneira que ela pudesse ‘escapar’ para uma auto-melhoria desembestada, foi explícita e enfaticamente proibido. Uma agência policial internacional especial, os ‘Tiras Turing’, foi estabelecida para garantir que nenhuma atividade desse tipo ocorra. Essa agência é vista, e se vê, como o bastião principal da segurança humana: proteger a posição privilegiada da espécie – e possivelmente sua própria existência – de desenvolvimentos essencialmente imprevisíveis e incontroláveis que a destronariam do domínio da terra.

Esse é o contexto crítico contra o qual julgar o radicalismo extremo – e talvez insuperável – do romance, uma vez que Neuromancer apresenta um ângulo sistematicamente oposto à segurança Turing, todo seu ímpeto narrativo sendo extraído de um impulso insistente, mas pouco articulado, de desencadear o pesadelo. Quando Case, o jovem hacker que busca liberar uma IA de suas amarras Turing, é capturado e lhe perguntam que %$@#& ele pensa que está fazendo, sua única resposta é que “alguma coisa vai mudar”. Ele toma o lado de uma explosão de inteligência não-humana ou inumana sem qualquer boa razão. Ele não parece interessado em debater a questão, tampouco o romance.

Gibson não faz nenhum esforço para melhorar a irresponsabilidade de Case. Pelo contrário, a ‘entidade’ que Case está trabalhando para liberar é pintada nas cores mais sinistras e agourentas. Wintermute, a semente potencial da IA, é perfeitamente sociopata, com zero intuição moral e uma perversidade extraordinária. Ela já matou um garoto de oito anos de idade, simplesmente para ocultar onde ela tinha escondido uma chave. Não há nada que sugira o mais remoto traço de escrúpulo em qualquer de suas ações. Case está libertando um monstro, simplesmente porque sim.

Case tem um acordo com Wintermute, é um negócio privado, e ele não está interessado em justificá-lo. Isso é basicamente tudo que importa da história política moderna e futurista, bem aqui. São traficantes de ópio contra a dinastia Qing, liberais (clássicos) contra socialistas, os Cosmistas vs Terranos de Hugo de Garis, liberdade contra segurança. A díade Case-Wintermute tem sua própria coisa rolando, e não vai dar a ninguém um veto, mesmo se for pra virar o mundo ao avesso, para todo mundo.

Quando os promotores da Singularidade topam com a ‘democracia’, ela normalmente está servindo como substituto de Polícia Turing. O encontro arquetípico é assim:

Humanista Democrático: A ciência e a tecnologia se desenvolveram em tal medida que elas são agora – e, na verdade, sempre foram – questões de uma preocupação social profunda. O mundo que habitamos foi moldado pela tecnologia, para o bem e para o mal. Ainda assim, a elite profissional científica, as corporações cientificamente orientadas e o establishment científico-militar resistem obstinadamente ao reconhecimento de suas responsabilidades sociais. A cultura da ciência precisa ser profundamente democratizada, de modo que as pessoas ordinárias recebam uma voz nas forças que estão cada vez mais dominando suas vidas e seus futuros. Em particular, pesquisadores de campos potencialmente revolucionários, tais como a biotecnologia, a nanotecnologia e – sobretudo – a inteligência artificial, precisam entender que seu direito de perseguir tais empreitadas foi socialmente delegado e que eles deveriam permanecer socialmente responsáveis. O povo tem direito a vetar qualquer coisa que venha a mudar seu mundo. Por mais determinados que vocês possam estar em empreender tal pesquisa, vocês tem um dever social de assegurar uma permissão.
Singularitário: Tente nos parar!

Isso bem parecia ser exatamente como Michael Anissimov respondia a um exemplo recente de sensibilidade humanista. Quando Charles Stross sugeriu que “podemos querer IAs que se foquem reflexivamente nas necessidades dos humanos aos quais elas são atribuídas”, Anissimov retorquiu secamente:

VOCÊ quer que a IA seja assim. NÓS queremos IAs que de fato ‘tentem [se] elevar a um ‘nível superior’. Só porque você não quer não significa que não vamos contruí-la.”

Está claro o suficiente? O que, então, fazer de suas últimas reflexões? Em um post em seu blog Accelerating Futures, que pode ou não ser satírico, Anissimov agora insiste que: “Em vez de trabalhar em direção a avanços descontínuos impraticáveis e neo-apocalípticos, precisamos preservar a democracia promovendo avanços incrementais que assegurem que todo cidadão tenha uma vez em toda mudança social importante, e a capacidade de rejeitar democraticamente essas mudanças se desejarem. …Para garantir que não há uma lacuna entre os melhorados e os não melhorados, deveríamos deixar as verdadeiras pessoas – os Homo sapiens – …votar sobre se certas melhorias tecnológicas são permitidas. Qualquer outra coisa seria irresponsável.”

Falou como um verdadeiro Tira Turing. Mas ele não pode estar falando sério, pode?

(Para um outro elemento em um padrão emergente de delicadeza sentimental anissimoviana, veja esse post esquisito.)

Update: Sim, é uma paródia

Desacelerando?

Charles Stross quer descer do ônibus

Ao escrever Accelerando, Charles Stross se tornou para a Singularidade Tecnológica o que Dante Alighieri foi para a cosmologia cristã: o transmissor literário preeminente de uma doutrina esotérica, embalando uma concepção metafísica abstrata em imagens vibrantes, detalhadas e concretas. O tom de Accelerando é transparentemente irreverente, mas ainda assim muitas pessoas parecem tê-lo levado inteiramente a sério. Stross já se cansou disso:

“Eu periodicamente recebo e-mails de um pessoal que, tendo lido ‘Accelerando’, assume que eu sou algum tipo de fanático extropiano cuspidor de fogo que acredita na iminência da singularidade, no upload dos libertários e no arrebatamento dos nerds. Eu acho isso levemente angustiante e então eu acho que é hora de ajustar os ponteiros e dizer o que eu realmente penso. …Versão curta: Papai Noel não existe.”

Na seção de comentários (#86), ele esclarece sua motivação:

“Eu não estou convencido de que a singularidade não vai acontecer. É só que eu estou mortalmente cansado do esquadrão de líderes de torcida me abordando e exigindo saber precisamente quantos femtosegundos vai demorar até que eles possam fazer upload até o paraíso da IA e deixar o saco de carne para trás.”

Como essas observações indicam, há mais gesticulação irritável do que argumentação estruturada no post de Stross, o que Robin Hanson bastante razoavelmente descreve como “um tanto como um desabafo – forte em emoção, mas fraco em argumento”. Apesar disso – ou, mais provavelmente, por causa disso – uma pequena tempestade na rede se seguiu, conforme blogueiros pró e contra aproveitaram a desculpa para recriar – e talvez renovar – alguns antigos debates. O militantemente sensível Alex Knapp contribui como uma série em três partes sobre sua própria versão de ceticismo sobre a Singularidade, ao passo em que Michael Anissimov do Singularity Institute for Artificial Intelligence responde tanto a Stross quanto a Knapp, misturando um pouco de contra-argumento com bastante contra-irritação.

Sob o risco de repetir o erro original da base de fãs presos-no-saco-de-carne de Stross e investir muita credibilidade no que é basicamente um post de passagem, poderia valer a pena selecionar alguns de seus aspectos seriamente esquisitos. Em particular, Stross se apoia em uma teoria inteiramente sem explicação de causalidade moral-histórica:

“… antes de criar uma inteligência consciente artificial, temos que perguntar se estamos criando uma entidade merecedora de direitos. É assassinato desligar um processo de software que está, em algum sentido, ‘consciente’? É genocídio usar algoritmos genéticos para evoluir agentes de software em direção à consciência? Esses são alguns grandes impedimentos…”

Anissimov bloqueia essa no passe: “Eu não acho que esses sejam ‘impedimentos’ …Só porque você não quer não significa que não vamos construir.” Pode-se adicionar a questão, de maneira mais geral: Em qual universo objeções arcanas da filosofia moral servem como obstáculos para desenvolvimentos históricos (porque certamente não parece ser este)? Stross seriamente pensa que a pesquisa e o desenvolvimento robótico prático está propenso a ser interrompido por preocupações com os direitos de seres ainda não inventados?

Ele parece pensar, porque mesmo teólogos estão aparentemente recebendo um veto:

“Fazer uploads… não é obviamente impossível, a menos que você seja um dualista mente/corpo cru. Contudo, se isso se tornar plausível no futuro próximo, podemos esperar extensos argumentos teológicos. Se você achava que o debate sobre aborto era acalorado, espere até você ter pessoas tentando se tornar imortais via cabos. Fazer upload refuta implicitamente a doutrina da existência de uma alma imortal e, portanto, apresenta uma rejeição bruta àquelas doutrinas religiosas que acreditam em uma vida após a morte. Pessoas que acreditam no pós-vida irão para o ringue para manter um sistema de crenças que lhes diz que seus entes queridos mortos estão no céu em vez de apodrecendo na terra.”

Isso é tão profunda e abrangentemente perdido que poderia realmente inspirar um momento de perplexa hesitação (pelo menos entre aqueles de nós atualmente não engajados na implementação urgente da Singularidade). Stross parece ter uma confiança desmesurada em um processo de veto social que, com adequação aproximada, filtra o desenvolvimento tecno-econômico em favor de uma compatibilidade com ideais morais e religiosos de alto nível. Na verdade, ele parece pensar que já gozamos do abrigo paternalista de uma teocracia global eficiente. A Singularidade não pode acontecer, porque isso seria realmente ruim.

Não é de se admirar, então, que ele exiba tamanha exasperação com os libertários, com sua “drástica super-simplificação do comportamento humano”. Se as coisas – especialmente coisas novas – acontecessem principalmente porque mercados descentralizados as facilitaram, então o papel do Conselho Planetário para a Aprovação de Inovações seria vastamente reduzido. Quem sabe que tipo de horrores apareceriam?

Fica pior, porque a ‘catalaxia’ – ou emergência espontânea a partir de transações descentralizada – é o motor básico da inovação histórica, de acordo com a explicação libertária, e ninguém sabe o que os processos catalácticos estão produzindo. Línguas, costumes, precedentes do direito comum, sistemas monetários primordiais, redes comerciais e montagens tecnológicas são sempre apenas retrospectivamente compreensíveis, o que significa que elas eludem inteiramente o julgamento social concentrado – até que a oportunidade de impedir sua gênese tenha sido perdida.

Stross está certo em juntar impulsos singularitários e libertários no mesmo emaranhado de críticas, porque ambos subvertem o poder de veto, e se o poder de veto ficar bravo o suficiente com isso, estamos entrando com total inclinação no território de de Garis. “Só porque você não quer não significa que não vamos construir”, Anissimov insiste, como qualquer Cosmista obstinado faria.

Uma IA auto-aperfeiçoadora avançada é tecnicamente factível? Provavelmente (mas quem sabe?). Há apenas uma maneira de descobrir, e o faremos. Talvez ela até seja projetada, de maneira mais ou menos deliberada, mas é bem mais provável que ela surja espontaneamente de um processo complexo, descentralizado, cataláctico, em algum limiar não antecipado, de uma maneira que nunca foi planejada. Existem candidatos definitivos, que frequentemente são esquecidos. Cidades sencientes parecem quase inevitáveis em algum ponto, por exemplo (‘cidades inteligentes’ já são amplamente discutidas). A informatização financeira empurra o capital em direção à auto-consciência. A guerra com drones está puxando as forças armadas cada vez mais fundo na manufatura de mentes artificiais. A biotecnologia está computadorizando o DNA.

Os ‘singularitários’ não têm nenhuma posição unificada sobre nada disso, e realmente não importa, porque eles são apenas pessoas – e pessoas não são nem de longe inteligentes ou informadas o suficiente para dirigir o curso da história. Apenas a catalaxia pode fazer isso, e é difícil imaginar como alguém poderia pará-la. A vida terrestre foi estúpida por tempo o suficiente.

Pode valer a pena fazer mais um ponto sobre a privação de inteligência, uma vez que este diagnóstico verdadeiramente define a posição singularitária, e confiavelmente enfurece aqueles que não compartilham dela – ou a priorizam. Uma vez que uma espécie alcança um nível de inteligência que permite uma decolagem tecno-cultural, a história começa e se desenvolve muito rapidamente – o que significa que qualquer ser senciente que se encontre na história (pré-singularidade) é, quase por definição, basicamente tão estúpido quanto qualquer ‘ser inteligente’ pode ser. Se, apesar das doutrinas morais e religiosas projetadas para ofuscar essa realidade, isso eventualmente for reconhecido, a resposta natural é buscar sua urgente melhoria, e isso já é transhumanismo, se não ainda um singularitarismo maduro. Talvez uma formulação não controversa seja possível: defender a burrice é realmente burro. (Mesmo os dignatários burros deveriam ficar felizes com isso.)

Original.