A Tentação do Vazio (Parte 3b)

Ameaça no oeste

Reconhecendo a vantagem inicial obtida pelos soviéticos com seus grandes motores de foguetes, o que lhes dá muitos meses de tempo de dianteira, e reconhecendo a probabilidade de que eles explorarão essa dianteira durante algum tempo por vir em sucessos ainda mais impressionantes, não obstante é necessário que façamos novos esforços próprios. Pois, embora não possamos garantir que um dia seremos os primeiros, podemos garantir que qualquer falha em fazer esse esforço nos fará sermos os últimos. Assumimos um risco adicional, ao fazê-lo à vista de todo o mundo, mas, como demonstrado pelo feito do astronauta Shepard, esse risco aumenta nossa estatura quando somos bem-sucedidos. Mas isso não é meramente uma corrida. O espaço está aberto para nós agora; e nossa ânsia de compartilhar de seu significado não é governada pelos esforços de outrem. Nós vamos para o espaço porque o que quer que a humanidade deva empreender, os homens livres devem compartilhar plenamente. (…) Acredito que esta nação deve comprometer-se a atingir o objetivo, antes que esta década termine, de pousar um homem na Lua e trazê-lo de volta à Terra em segurança.
John F Kennedy

“The Bow of Ulysses” [de James Anthony Froude]… endossa o velho colonialismo, relembrando nostalgicamente dos dias em que a Grã-Bretanha não era um império, mas sim em que os colonialistas britânicos eram piratas e bandoleiros, que roubavam, conquistavam e eventualmente governavam, gradualmente fazendo a transição de uma bandidagem móvel para uma bandidagem estacionária, sem que o governo britânico prestasse muita atenção. Em “The Bow of Ulysses”, Froude condena o imperialismo do século XIX como impraticavelmente de esquerda, e inevitavelmente levando à destruição do império britânico e, assim, à ruína dos súditos do império britânico, tudo que se seguiu como ele imaginou… Os imperialistas, aqueles que defendiam o Império Britânico, eram a esquerda, e os colonialistas eram a direita. E os colonialistas corretamente previram que se isso continuasse, teríamos a esquerda que temos agora – um dos muitos fatos estranhos que se encontra quase se lê livros antigos.
James A Donald

As peculiaridades da ‘corrida espacial’ ainda estão por se desenrolar totalmente. Através de sua extraordinária formalidade, que reduz as ambições extraterrestres a um binário, a concorrência internacional colocou o primeiro homem na Lua, ela parece – restrospectivamente – dever mais à cultural e à história dos esportes organizados do que a realizações tecnológicas e econômicas. Haveria, por definição, um vencedor e um perdedor, ou seja, uma decisão booleana, convencional e indiscutível. E então ela acabaria. Talvez ela fosse vista como se apontasse para algo além, mas, na verdade, a Lua era uma linha de chegada.

Dentro de um contexto geo-estratégico amplo, a corrida espacial era um sintoma de um impasse. Uma história moderna da guerra que havia descendido de maneira inexorável de um jogo restrito de príncipes até uma guerra total desencadeada, em meio a povos ideologicamente motivados, tendo como alvo suas instituições básicas, suas infraestruturas industriais e até mesmo raízes demográficas, havia se consumado – virtualmente – no potencial MAD para um extermínio rápido e recíproco. Sob essas circunstâncias, uma sublimação regressiva era exigida, transmitindo conflitos através de representantes cavalheirescos – até mesmo heróis homéricos – que competiam em nome das populações super-letais que eles aplacavam. O vôo de um astronauta simbolizava um antagonismo, substituindo um ataque nuclear. Neste sentido, a vitória na corrida espacial era um pagamento adiantado mal disfarçado da conclusão da Guerra Fria.

Essa sublimação é apenas metade da estória, contudo, porque um duplo deslocamento ocorreu. Ao passo em que a corrida espacial substituição um resultado militar por um desenlace formal (cavalheiresco), ela também marginalizou o prospecto há muito vislumbrado da colonização espacial informal, substituindo-o por um objetivo predominantemente convencional (ou sócio-político). O preço de um triunfo inequívoco foi um ‘triunfo’ que recaiu na real ambiguidade de um (mero) simbolismo, com tentações de negação da realidade, pós-modernismo e ‘fraude lunar’ já surgindo. Quando não se ganha nada além da vitória, dificilmente poderia ser de outra forma. Um campeão não é um colono, ou qualquer coisa próxima de um.

Qual é essa ambiguidade real? Ela começa na fronteira, com uma série de questões que vão além do significado da corrida espacial e para dentro da identidade da América. Como um país estabelecido dentro da época moderna e, assim, exaustivamente determinado pelas dinâmicas do colonialismo, a América foi condensada a partir de uma fronteira.

Em um parêntese estendido, vale a pena notar explicitamente que a população aborígene do continente ainda não era a América, mas algo anterior e outro, encontrado na fronteira. A ideia de um ‘Nativo Americano’ é um exercício de desorientação histórica, quando não é meramente um oxímoro impensado. Isso não é sugerir que essas populações eram incapazes de se tornar americanas, como muitas fizeram, uma vez que a América tivesse se iniciado no período moderno. Ao inovar modos distintivos de secessão, elas eram até mesmo – em certos casos – capazes de se tornarem radicalmente americanas. Um cassino numa reserva em fuga institucional da Receita Federal é vastamente mais americano do que o Federal Reserve, em um sentido que (com sorte) se tornará evidente.

A fundação da América foi uma fuga para a fronteira, estendendo uma trajetória de escapada para dentro de um espaço que perpetuamente recua, ou um horizonte aberto – o futuro tornado geografia e apenas subsequentemente um território político. Esse projeto espacial original, informal e inerentemente obscuro é tão antigo quanto a própria América – exatamente tão antigo. Como Frederick Jackson Turner já havia observado em 1893, para a América, uma fronteira aberta é uma necessidade existencial, ou seja: a condição básica da existência americana. Uma vez que a fronteira fecha, os limites assumem, a excepcionalidade se transforma em retórica insubstancial (ou pior, em seu fac-símile neoconservador) e começa a necrose.

Nesse aspecto, a América não pode ser mantida como um estado com um programa espacial. Ela requer um horizonte aberto, estendido para além da terra se necessário, suficiente para sustentar um prolongamento de seu processo colonial constitutivo. Apenas sobre e a partir dessa fronteira é que a América tem um futuro, embora ‘os EUA’ possa persistir (mais) confortavelmente sem ela. É por isso que, por baixo, ao lado e além da corrida espacial, o ‘mito’ da fronteira se estendeu espontaneamente para panoramas extraterrestres considerados como um prospecto essencialmente americano. (A NASA e suas obras são bastante incidentais a isso, na melhor das hipóteses.)

Uma vez que esta alegação convida acusações de controvérsia gratuita, vale a pena revisitá-la, em um passo mais lânguido. Mesmo depois de reenfatizar que a América não é o mesmo que – e, com efeito, é quase o exato oposto de – os EUA, objeções óbvias se apresentam. O programa espacial russo não é o mais economicamente plausível do mundo? A curva ascendente da atividade espacial chinesa recente não é vastamente mais exuberante? As Nações Unidas não reivindicaram os céus em nome de uma humanidade comum? O que, além de um acidente cultural-histórico e da arrogância injustificada que dele decorre, poderia imaginavelmente fazer ‘um prospecto essencialmente americano’ do espaço sideral?

O contraponto a todas essas objeções é o colonialismo, entendido através de sua linhagem radical, excepcional e americana. O colonialismo desta variedade derradeira se consolida a partir da fronteira e passa por limiares revolucionários de um tipo muito específico: guerras de independência, ou secessão (em vez de mudanças abrangentes de regime) que são pró-coloniais (em vez de anti-coloniais) em natureza. A colônia, enquanto colônia, se separa e, ao fazê-lo, cria uma nova sociedade. Exemplos bem sucedidos de tais eventos são extremamente raros – até mesmo singulares, ou excepcionais. Há a América e aí existem ‘causas perdidas’, com uma sobreposição considerável (e cada vez maior) entre elas.

O que tudo isso tem a ver com o espaço sideral, para além de um analogia impressionista? A gravidade consolida a conexão. Dividindo a superfície da terra e o espaço extraterrestre há uma diferença efetiva, ou problema prático, que pode bastante precisamente ser quantificada em termos tecnológicos (razões entre combustível e carga útil entregável) e resumida economicamente. Para fins de comparação, o transporte de mercadorias pelo Pacífico custa US$4/kg (por via aérea) ou US$0,16/kg em navios oceânicos porta-contêineres (US$3.500 por TEU, ou 21.600 kg). Alçar 1 kg de carga até a Órbita Baixa da Terra (OBT), em forte contraste, custa mais de US$4.000 (era mais de US$10.000 nos ônibus espaciais). Chame-a de a Fenda: um imenso problema estrutural de reabastecimento, que incentiva a auto-suficiência econômica com uma força esmagadora. Cada quilograma de produção extraterrestre economizou US$4.000 antes que mais cálculos sejam iniciados. Lá fora no espaço, a Fenda é o ponto de partida: uma realidade fria e anti-umbilical.

Qualquer que seja o ímpeto colonial histórico para o jeito americano – separação e refundação social – ele é reforçado em ordens de magnitude na OBT e além. Este é um ambiente que poderia ter sido projetado com precisão para o colonialismo revolucionário, como os autores de ficção científica há muito reconheceram. No outro lado da moeda jaz uma conclusão mais obviamente explicativa: Uma vez que desenvolvimentos para além da Fenda são inerentemente incontroláveis, não há nenhuma motivação prontamente discernível para que agências político-econômicas terrestres financiem a emergência de sociedades exo-planetárias que estão em uma correia transportadora irresistível até a independência, enquanto consomem recursos de maneira voraz, abrindo uma via de escape e, em última análise, lançando as fundações vazias para uma civilização concorrente de um tipo radicalmente sem precedentes e, portanto, ameaçadoramente imprevisível.

Segue-se, claramente, que a política do status quo sobre a colonização espacial é quase completamente expressada pela colonização espacial não acontecendo. Quando entendida em relação à subcorrente eclipsada da analogia da fronteira – fissão social através do colonialismo revolucionário ou guerras de independência – o ‘fracasso’ em emergir dos projetos de colonização espacial em grande escala começa a parecer algo completamente diferente: uma determinação eminentemente racional por parte dos estados territoriais mais poderosos do mundo para inibir o desenvolvimento de potenciais sócio-tecnológicos caracterizados por uma tendência ‘americana’ (colonial revolucionária).

Claro, em um mundo que se familiarizou com declarações anticolonialistas e antiimperialistas intercambiáveis, os termos dessa análise (de Froude / Moldbug / Donald) são inicialmente desconcertantes. Quando separado das confusões e fusões de uma periferia perturbada, no entanto, o padrão é convincente. Colonos estão, por sua própria natureza, em fuga da metrópole. É menos do que um único passo entre essa admissão e o reconhecimento de que eles tendem à independência de ação, fissão social e desintegração política, seguindo tendências que os imperialistas – com igual inevitabilidade – buscam cercear. Uma vez que a colonização, entendida de maneira estrita, é uma transplantação cultural e demográfica, ela só adquire seu sentido de expansão quando é restringida sob auspícios imperiais. Embora colonial e rebelde não estejam nem perto de serem expressões sinônimas, elas são, não obstante, mutuamente atraídas uma pela outra, em uma proporção quase direta à divisão que separa a colônia da metrópole. Um empreendimento colonial é uma rebelião do tipo mais prático e produtivo, seja redirecionando uma rebelião do tempo para o espaço ou se completando em uma rebelião que transforma uma expedição em uma escapada. Desde o triunfo do imperialismo sobre o colonialismo na segunda metade do século XIX, é apenas na (e enquanto) América que esse sistema de relações persistiu, tenuemente, e em grande medida ocultado pelo surgimento de um estado imperial.

É útil, então, diferenciar em princípio (com uma excitabilidade moral mínima) entre um projeto espacial colonial, orientado a assentamentos extraterrestres, e um programa espacial imperial, projetado para garantir o controle terrestre sobre o desenvolvimento exo-planetário, manter a integridade política e, assim, assegurar retornos sobre os investimento através da Fenda. Da perspectiva do estado territorial, um programa espacial (imperial) que extraísse valor econômico de além do poço de gravidade da terra seria ideal, mas esta é uma ambição sem o apoio dos mais vagos lampejos de precedente histórico (e obstruída por pelo menos quatro ordens de magnitude de golfo econômico abismal). O segundo melhor e bastante satisfatório é a simples prevenção de projetos espaciais coloniais, substituindo o teatro espacial político como uma alternativa cara (mas de baixo risco e acessível). O ocasional homem na lua não apresenta nenhuma grande ameaça para a ordem do mundo, contando que tratemos de “trazê-lo de volta à Terra em segurança”.

A América foi uma escapada do Velho Mundo, e esta definição é suficiente para descrever o que ela ainda é – na medida em que ela ainda o for – tanto quanto o que ela pode ser, tudo que ela pode ser e o que qualquer escapada do novo velho mundo – se precisamente denominada – também seria. Quando esboçada pelas sombras do iluminismo sombrio, a América é o problema que os EUA foi projetado para resolver, a porta que os EUA fecha, o nome próprio de uma sociedade nascida da fuga.

Como Nietzsche nunca disse exatamente: Sou entendido? A América contra as estrelas e listras…

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