Uma República, Se Você Conseguir Mantê-La

As realizações interligadas de Kurt Gödel, que revolucionaram o entendimento rigoroso da lógica, da aritmética e do tempo, não são de uma natureza que prontamente recebem a aclamação do público. Há, não obstante, uma estória amplamente factual sobre ele que alcançou algum nível notável de popularidade, e é uma que se conecta sugestivamente com as preocupações centrais de sua obra. No website do Institute for Advanced Study (onde Gödel esteve estabelecido de 1940 até sua morte em 1978), a recordação de Oskar Morgenstern sobre o episódio em questão está registrada:

[Gödel], de maneira um tanto animada, me contou que, ao examinar a Constituição, para sua angústia, ele havia encontrado algumas contradições internas e que ele poderia demonstrar como, de uma maneira perfeitamente legal, seria possível que alguém se tornasse ditador e estabelecesse um regime fascista, nunca planejado por aqueles que elaboraram a Constituição. Eu lhe disse que era muito improvável que tais eventos jamais ocorressem, mesmo assumindo que ele estivesse certo, algo do que, claro, eu duvidava.

Mas ele era persistente e, então, tivemos muitas conversas sobre esse ponto em particular. Eu tentei lhe persuadir de que ele deveria evitar levantar tais questões no exame perante o tribunal em Trenton, e eu também contei a Einstein sobre isso: ele ficou horrorizado que tal ideia tivesse ocorrido a Gödel, e ele também lhe disse que não deveria se preocupar com essas coisas, nem discutir a questão.

Muitos meses se passaram e finalmente a data do exame em Trenton chegou. Naquele dia em particular, eu busquei Gödel com meu carro. Ele sentou atrás e então fomos buscar Einstein em sua casa na Mercer Street e dali dirigimos até Trenton. Enquanto dirigíamos, Einstein se virou um pouco e disse, “Ora, Gödel, você realmente está preparado para esse exame?”. Claro, esta observação irritou Gödel tremendamente, que era exatamente o que Einstein pretendia, e ele se divertiu muito quando viu a preocupação no rosto de Gödel.

Quando chegamos a Trenton, fomos conduzidos a uma sala grande e, embora normalmente as testemunhas fossem questionadas separadas do candidato, por causa da aparição de Einstein, uma exceção foi feito e todos os três de nós fomos convidados a nos sentarmos juntos, Gödel no centro. O examinador primeiro interrogou Einstein, depois eu, se pensávamos que Gödel seria um bom cidadão. Nós o asseguramos que este certamente seria o caso, que ele era um homem distinto, etc.

E então ele se voltou para Gödel e disse “Ora, Sr. Gödel, de onde você vem?”

Gödel: De onde eu venho? Da Áustria.

O examinador: Que tipo de governo vocês tinham na Áustria?

Gödel: Era uma república, mas a constituição era tal que finalmente ela foi alterada para uma ditadura.

Examinador: Ah! Isso é muito ruim. Isso não poderia acontecer neste país.

Gödel: Ah, sim, eu posso provar.

Para grande vantagem da inteligência na terra, Gödel não acabou se desqualificando para residência noa EUA através de seu entendimento desastrosamente super-preciso de sua constituição. Evidentemente, apesar de tudo que havia acontecido até 1947, um apego detalhado à constituição ainda não havia se tornado uma crimidéia.

Hoje, um apego enfático à Constituição dos EUA está restrito à franja lunática, isto é, decente do Partido Externo e a exceções ainda mais ranzinzas. Libertários extremos tendem a descartá-la como uma distração, se não uma encarnação maligna da degeneração estatista (quando comparado aos Artigos da Confederação, menos compatíveis com o Leviatã). Realistas reacionários da escola de Moldbug (em todas suas vastas multidões) são pelo menos igualmente desdenhosos, vendo nela pouco mais do que um objeto de fetiche e uma evasão da questão prática atemporal: Quis custodiet ipsos custodes? Se constituições são realisticamente indefensáveis, tanto em princípio quanto como uma questão de fato histórico brutalmente demonstrado, que significância elas poderiam ter para qualquer análise desapaixonada sobre o poder?

Uma vez que a esmagadora maioria das atividades atuais do Governo dos EUA é transparentemente inconstitucional, o argumento cético em grande parte se faz sozinho. Presidentes mobilizam apoio congressional para apontar juízes da Suprema Corte cuja principal qualificação para o cargo é a vontade de conspirar na subversão da constituição, para os aplausos ensurdecedores de um eleitorado devorador de favorecimentos e de seus intermediários lobistas. Como plausivelmente se poderia resistir a isso? Talvez esse fosse o ponto de Gödel.

Na verdade, ninguém realmente sabe qual era o ponto de Gödel. Jeffrey Kegler, que examinou o tópico cuidadosamente, o deixa aberto. “Aparentemente, a ‘inconsistência’ observada por Gödel é simplesmente que a Constituição prevê sua própria alteração”, sugere um Mark Dominus “gravemente desapontado”, que “estivera esperando por algo brilhante e sutil que apenas Gödel tivesse notado”. Dominus tira essa conclusão tentativa a partir de Paradox of Self-Amendment (“Paradoxo da Auto-Emenda”) de Peter Suber, onde mais audaciosamente se afirma:

Kurt Gödel, o logicista austríaco, entendeu que uma CE onipotente continha o risco da tirania. Gödel estudou a constituição dos EUA em preparação para seu exame oral de cidadania em 1948. Ele observou que a CE tinha limitações procedurais, mas nenhuma limitação substantiva; consequentemente, ela podia ser usada para derrubar as instituições democráticas descritas no resto da constituição.

Suber adiciona: “Um desejo de se limitar o poder de emenda, ou de torná-lo mais difícil — o que não é a mesma coisa — demonstra uma desconfiança para com a democracia, ou uma negação de que, em geral, as pessoas merecem o que recebem”. (Voltaremos a isso mais tarde.)

Isso é conceitualmente persuasivo, porque harmoniza as preocupações constitucionais de Gödel com sua preocupação intelectual central: a emergência de inconsistências dentro de sistemas formais auto-referentes. A Cláusula de Emenda (Artigo V, secção 1) é a ocasião para que a constituição fale sobre si mesma e, assim, encontre problemas rigorosamente comparáveis àqueles familiares dos teoremas de incompletude de Gödel na lógica matemática. Apesar da elegância dessa ‘solução’, contudo, não há nenhuma evidência sólida para sustentá-la. Além disso, estruturas auto-referentes podem ser identificadas em inúmeros outros pontos. Por exemplo, a autoridade da Suprema Corte em relação à interpretação constitucional não é um ponto similar de reflexividade, com potencial ilimitado de circularidade e paradoxo? Esta compreensão, em alta consideração entre os neo-reacionários, reconhece que a constituição permite – em princípio – que uma Suprema Corte suficientemente corrupta ‘interprete’ seu caminho até o poder absoluto (em conformidade com uma constituição que foi sublimada em ‘vida’ pura). Na medida em que a constituição permite seu próprio processamento, ela tem que – em última análise – permitir tudo.

Moldbug nos pede para acelerar por entre essa emaranhado formal, cortando o nó górdio. “A soberania é conservada”, ele repete, insistentemente, então as ocasiões em que o poder se compromete a se atar são essencialmente risíveis. É claro que o guardião final da constituição é um ditador constitucionalmente irrestrito. Isso é simplesmente sanidade schimittiana.

Com todo devido desdenho para com o argumentum ad hominem, provavelmente pode se concordar que Gödel não era um tolo, de modo que sua animada identificação de uma falha localizada na Constituição dos EUA merece consideração como exatamente isso (em vez de uma desculpa para jogar no lixo toda a problemática). As ressonâncias formais entre seus argumentos topicamente díspares fornecem um incentivo adicional para desacelerar.

Seja na teoria dos números ou na cosmologia do espaço-tempo, o método de Gödel era avançar a formalização do sistema sob consideração e então testá-lo até a destruição nos ‘loops estranhos’ que ele gerava (paradoxos de auto-referência e viagem no tempo). Em cada caso, demonstrava-se que o sistema permitia casos que ele não poderia consistentemente absorver, abrindo-o a um processo interminável de revisão, ou melhoria técnica. Desta forma, definia-se uma inteligência dinâmica, ou a lógica da imperfeição evolutiva, com uma adequação que era tanto suficiente quanto necessariamente inconclusiva. O que não se fez foi jogar no lixo a própria possibilidade de uma aritmética, de uma lógica matemática ou de uma história cósmica — exceto na medida em que essas eram falsamente identificadas com ídolos de finalidade ou fechamento.

Com base nas esguias evidências disponíveis, a ‘leitura’ que Gödel fez da Constituição dos EUA foi estritamente análoga. Longe de desculpar o abandono do constitucionalismo, ela identificou o projeto constitucional como a única resposta intelectualmente séria ao problema da política (isto é, ao poder sem travas). É uma necessidade lógica sutil que as constituições, como quaisquer sistemas formais de complexidade comparável, não pode ser aperfeiçoada ou consistentemente completada. Em outras palavras, como Benjamin Franklin reconheceu, qualquer república é precária. Nada necessariamente se segue disso, mas uma série de coisas poderia.

De forma mais abrupta, pode-se contemplar a criança enferma com tristeza, antes de se abandoná-la na encosta aos lobos. Quase todas as vozes interessantes na direita parecem estar indo nessa direção. Constituições são uma piada desagradável.

Alternativamente, o constitucionalismo poderia ser elevado a um novo nível de dignidade cultural, condizente com seu status enquanto único modelo de governo republicano, ou política verdadeiramente lógica. Isto exigiria, primeiro de tudo, que a necessidade de modificação constitucional fosse reconhecida apenas quando tal modificação tornasse a constituição mais forte, em termos puramente formais, ou sistêmicos. No caso dos EUA, a primeira indicação de tal abordagem seria uma emenda ao próprio Artigo Quinto, a fim de especificar que emendas constitucionais são toleradas apenas quando elas satisfazem critérios de melhoria formal, legitimados em termos exatos e matemáticos, de acordo com padrões de prova não diferentes daqueles aplicáveis a argumentos absolutamente incontroversos (teoremas). O projeto constitucional seria subordinado à matemática aplicada, como uma subsecção da teoria do controle não linear.

Sob essas (improváveis) circunstâncias, o propósito da constituição é se sustentar e, assim, à República. Enquanto objeto matemático, a constituição é maximamente simples, consistente, necessariamente incompleta e interpretável como um modelo de lei natural. A autoridade política é alocada unicamente para servir à constituição. Não existem autoridades que não são supervisionadas, dentro de estruturas não lineares. A linguagem constitucional é construída formalmente para eliminar toda ambiguidade e ser processada de maneira algorítmica. Elementos democráticos, junto com a discrição oficial e o julgamento legal, são incorporados de maneira relutante, minimizados em princípio e gradualmente eliminados através de melhorias formais incrementais. O argumento defere à perícia matemática. A política é uma doença que a constituição é projetada para curar.

Um ceticismo extremo deve ser antecipado, não apenas vindo dos monarquistas moldbuggianos, mas de todos aqueles educados pela teoria da Escolha Pública a analisarem ‘a política sem romance‘. Como defender a constituição poderia se tornar um imperativo absoluto, categórico ou incondicional, quando os únicos possíveis defensores são pessoas, guiadas por incentivos múltiplos, poucos dos quais se alinham nitidamente com a ordem constitucional objetiva? Ainda assim, como isto é diferente da questão do progresso matemático ou natural-científico? Matemáticos não são igualmente pessoas, com apetites, egos, motivações por status guiadas pelo sexo e capacidades profundamente defeituosas de introspecção realista? Como a matemática avança? (Ninguém pode negar seriamente que ela o faz.) A resposta certamente jaz em seus critérios autônomos ou impessoais de excelência, combinados com instituições pluralistas que facilitam uma convergência darwiniana. A equivalência gödeliana entre lógica matemática e governo constitucional indica que tais princípios e mecanismos estão ausentes do domínio público apenas devido a um projeto (democrático-burocrático) defeituoso.

Quando se trata de realismo profundo e de armas, há qualquer razão para se pensar que as forças armadas são resistentes, por natureza, à subordinação constitucional? Entre o cargo sublime de Comandante-em-Chefe e o mero homem, não é óbvio que a autoridade deveria tender a gravitar em direção ao primeiro? Pode-se argumentar que a civilização não é nada além disso, ou seja: a tendência da autoridade pessoal de declinar até zero. Homens-macacos rejeitarão isso, é claro. É o que eles fazem.

Entre democracia, monarquia, anarquia ou governo republicano, os argumentos não acabarão em breve. Eles são verdadeiramente antigos, e estão ilustrados na Odisseia, pela estratégia de amarrar contra o chamado das Sereias. Odisseu pode se amarrar? Apenas os republicanos defendem a tentativa, como Gödel o fez. Todos os outros deixam as Sereias ganharem. Talvez elas ganhem.

Original.

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